nossa senhora das flores

a minha velha coleção de postais
trouxe todos em branco depois de viagens
vontade insuportável de silêncio
de guardar comigo o gás das ruas
um beco em primeira edição

silêncio eivado de temor e tremor
transborda pardais mortos e calçadas
carros abandonados e santos beberrões
nossa senhora das flores e uma oração insperada

aos santos peço em novenas
nada depois de tantos noves fora
por cada visita à catedral
trago tatuada uma minúscula cruz
no desnudo corpo de missionário
postal que enviei de Java em 189…

Quiromancia

e por ter as mãos lisas
qualquer toque fricção
se transforma em uma marca profética
encostar as mãos
no seu corpo
traz estigmas
marcas indeléveis
de uma infinita transferência de carma

corpo fechado
contra escritores oniscientes
e deus com todos seus predicados

neste ponto da vida
é uma benção
trazer lisa assim
a palma da minha mão

dodecaedro

dizem existir lindos poemas escritos durante a guerra
chamaram esta nossa guerra de particular
em toda parte ela está
guerra pública todos os dias
não vejo os poemas
vejo batidas tribais
podem ser os tambores de guerra
ouço dos corpos na fronteira oeste sul norte leste
vejo armas na TV
cantarolo rodo cotidiano
não existem hordas e a guerra continua
ouço da vida nos morros
dos que perdem a linguagem
ouço os barulhos das paredes
guerra de guerrilha milícias
não existem linhas inimigas que me escondam
este conflito é um dodecaedro
Platão em seus mistérios deve ter dito
quando o povo conhecer o dodecaedro
conhecerá a quintessência
então
seremos mais águias que serpentes

outono verdadeiro

e no início era o outono
o outono estava em Deus
e o outono era Deus
não existem mais folhas
podemos ver tudo
vento que varre
tudo que vem antes de sermos carne
o outono é uma aula perfeita
do meu descontentamento às ilusões perdidas
corro contra o verão
no inverno perco o tato
como invejar a primavera?
as rosas não falam
lembra?

ao pó (através do Gita)

um poeta escreveu um livro
please, plant this book, richard brautigan
um livro de instruções
os poemas eram rótulos em saquinhos de sementes
nenhum grão de mostarda
no espaço do jardim quero:
horta, pomar, bosque e labirinto

sweet alyssum royal carpet
sasha daisy
squash star fruit aspen
parsley
alface california native flower
carnation willow water violet
cenouras flor-de-mel pomegranates
calendula

penso se alguém seguiu suas orientações
queria plantar meu livro de poemas
não possuo semente alguma
nem livro algum
plantarei este poema
e as flores que brotarem
deverão ser colhidas pelos longos dedos enlutados de
uma verdadeira dama da noite

estranhos negócios estes que temos com a terra
feitos dela
pesados como ela
esta intransferível passagem de ida e volta que recebemos
antes de chorar

os coveiros deveriam reflorestar
madeira para ataúdes
replantar as mesmas árvores
que os romanos usavam para fazer cruzes

falo ao carpinteiro que me conta estórias
as primeiras idéias sempre vão para o solo
diz mais saber das águas e dos ares
e que a terra tampouco lhe foi leve:
não me interessa o que vira pó
paletós de madeira e afins
já que sabes do pó ao pó
concentre-se na jornada

a cada vez que deus inspira
nos sentimos voltando para casa

Ondas e Vagas

alice encontra a lagarta

para alice está tarde para as palavras

sobre o lindo cogumelo gigante a lagarta oferece a névoa reparadora

some alice como se fosse o ar

“nas mesmas águas que o místico nada o drogado se afoga”

eu e alice nunca passamos da arrebentação

em alto mar todas as ondas são vagas

não quebram simplesmente

sua arte é perambular.

nem com todos os aterros

possui a terra a pedagogia das águas

matamos a circum-navegação

e nossa arte de vagar

um rochedo precioso atirado em alto mar

é mais túmulo que adorno

A Cor da Minha Fé

     Lembro de um livro que li há anos. Ainda em inglês, o livro se chamava A Cor da Água, escrito pelo norte-americano James McBride. É a estória de uma judia que casa com um homem negro e tem muitos filhos. Este livro é a biografia desta corajosa mulher contada por um dos seus filhos. Esta mulher fugiu da sua família judia tradicionalista para viver o seu amor e achar seu caminho no mundo. Neste previsível conflito, apimentado por raça e religião, emerge uma pergunta feita pelo autor, ainda menino, à sua mãe: “Mãe, qual é a cor de Deus?”. Ela diz que ele não é negro ou branco, muito menos de alguma tonalidade entre estes dois pólos. Pressionada por pergunta tão complexa, ela responde: “Deus é da cor da água”. Ele é da cor da água. Uma propriedade que nenhum mortal possui, ser da cor da água. Desde este dia, me conforta partir desta resposta para refletir sobre a natureza do criador. E a natureza da minha fé. A primeira característica que me prende é a cor mesmo. A cor da água. A transparência da água. Esta clareza da verdade que toma mil formas, mas permanece verdade com toda sua capacidade curativa e regeneradora. Quando suja, barrenta, misturada a outras substâncias, é natureza de água que permanece, dando vida ao que de outra maneira estaria inerte e morto. Outro aspecto divino da água que me toca é a sua permanência. Desde quando o mundo é mundo, como o conhecemos, a quantidade de água no planeta é a mesma. Ela somente aumenta quando pensamos na crescente população da Terra, temos mais água do que qualquer outra coisa na nossa constituição.  Mesmo que não a percebamos quando é nuvem seguindo os ventos sábios. Mais um ponto na lista, a utilidade da água. São tantas. E a mais importante delas, que é nos manter vivos. Nos dá alimento dos próprios animais que ela abriga. Entre eles, os peixes e a sua compassiva alma de cardume. Navegamos mares e rios, enfrentando os caprichos dos mesmos. Tentamos compreender a água, assim como tentamos compreender Deus, mas precisamos vivê-la, escutá-la e guardar a sabedoria dos seus sussurros. A última coisa que me recordo é da memória, da memória da água. Sim, a água possui uma memória que guarda eternamente tudo que faça parte dela por menos que um segundo. E a ponta de um dedo meu que toque esta água, vai fazer parte dela para sempre. Será água reconhecendo água. Quanto mais repasso estas idéias em meus sonhos acordados, mais vejo que falo tanto de Deus quando da minha fé. E como os variados corpos de água do planeta, minha fé assume diferentes formas nos mais variados momentos. Pode ser um lago meditativo ou assumir a força das águas de março. Ser riacho constante e humilde, escorrendo entre pedras que machucam e purificam. Gosto quando oro no silêncio da madrugada e visualizo as nuvens espelhando uma geleira imensa e inquebrantável. Sinto que prossigo sempre, como as nuvens que carregam os ensinamentos do gelo. Um poeta disse: “Nós somos mímicos. As nuvens são pedagogas”. Com estas palavras e símbolos a minha fé escorre para que novos símbolos e palavras venham manter esta fonte de vida chamada fé em todos nós. E estes estados da água, sólido, líquido e gasoso são como as estações da minha fé. Esta fé respeita a minha razão e se permite ter fórmula química. Meus testes e recompensas. E ela é sempre trampolim, lá embaixo mais água, como não poderia deixar de ser. Por último lembro das drogas, e dos drogados em uma busca incessante por uma experiência compensadora, uma experiência de fé. Pois saibam, onde o drogado se afoga o místico nada com prazer. E nestas águas da fé em tudo é que devemos estar, em estado de comunhão revigorante com todos os nossos sonhos.           

Pisquila e Marina – Capítulo I

Se ele tivesse nascido na India, seria com certeza um Intocável. Infelizmente, para ele era impossível passar desapercebido, ele era sacaneado todos os dias. Um homem em miniatura, quase um anão, uma pessoa muito pequena. Ele andava pouco pelas ruas, ia a escola, sua TV era a janela da sala de estar, observando a vida dos vizinhos.
        Existiam duas coisas que Pisquila realmente adorava fazer nesta vida. Ler novelas góticas era a segunda em sua preferência. A primeira, era manter longas conversas com a sua irmã. Seu único parente conhecido. Fruto de uma obscura história familiar, uma nada fácil árvore genealógica os colocou com algum sangue em comum correndo em suas veias. O nome dela era Marina e ela era uma sereia. Algumas vezes ela era uma sereia, algumas vezes tinha pernas, mas até com as pernas ela era uma sereia. Tão bonita como qualquer moça do mar e tão boa como qualquer fada. Ela sempre tivera este nome, apesar dos inúmeros anos de vida. Um nome que sobreviveu à língua morta que o continha. Uma língua que brevemente existiu, algo entre o Latim e o Português. Marina tinha longos cabelos, seus cabelos pareciam enxertados nas paredes do quarto e em cada peça de mobília. Isso mantinha a mente de Pisquila em paz, deixando seus medos no mundo lá de fora. Ela penteava seus cabelos por horas, enquanto Pisquila lhe contava outro dia infernal que tivera na escola.
        Marina sempre cantava canções de sereias. Canções temidas por marinheiros, melodias que eles não iriam cantar nem quando estivessem longe do mar. Quadrinhas que ela repetia como mantras. Ela sempre vivera longe do mar, em uma cidade no interior do Brasil. Ela precisava de água salgada para sobreviver. Cantando uma mágica combinação de sons ela trazia um pequeno oceano para dentro do seu quarto duas vezes por semana. Ela nadava e brincava com seu rabo-de-peixe, sempre acompanhada por criaturas marinhas que o seu pequeno oceano particular trazia com ele. E neste mar de Marina não existiam barcos para serem afundados, nem faróis para salvá-los.
        Marina tinha uma estória diferente, ela nunca foi à escola. Apesar disso ela sabia o bastante sobre o mundo para saciar a sede de conhecimento de Pisquila. Sua linhagem poderia ser traçada até tempos muito anteriores que a Grécia Antiga. Alguns dos ancestrais dela estavam presentes na última vez que mortais, deuses e semideuses sentaram-se a mesma mesa, pisaram o mesmo solo. Foi o casamento de Cadmo e Harmonia. Cadmo foi o homem que deu o alfabeto aos gregos, ele não era um qualquer, um Zé Ninguém. Naquele mundo nada era o que parecia ser. Morte não era morte. Verdade não era verdade. Os mortais, seus corpos e seus prazeres, tinham Dionísio como seu santo padroeiro. Os deuses, seus corpos e seus prazeres, tinham Zeus como seu líder maior. Os semideuses, seus corpos e seus prazeres, sem ninguém para olhar por eles. Alguns deles ainda vagam silenciosamente, chutando pedras pelas estradas, levando estranhas vidas e procurando uma nova mitologia para se encaixarem, para que suas vidas voltem a fazer sentido. Pisquila e Marina eram dois deles.
       
        Naquela noite Pisquila estava estranhamente silencioso. Marina percebeu isso.
        – Como vai tudo? – Marina arriscou.
        – Tudo bem.
        – Como foi a escola? – nova tentativa dela.
        – Um inferno. Como sempre.
        Ela parou na frente do espelho, começou a mexer as mãos. Animais, estranhas figuras e cidades mortas começaram a aparecer na tela. Normalmente qualquer fluxo de pensamento de Pisquila seria cortado, e ele admiraria estas criações. Mas, ele permaneceu distante.
        – Qual o problema? Você está ficando cada vez mais triste.
        – Não é nada, problema meu.
        – Alguém te maltratou? Feriu seus sentimentos?
        – Não. Na verdade, eles conseguem me ignorar de vez em quando, parecem estar se acostumando comigo. Para eles, agora, eu sou apenas o único anão da cidade.
        – Eu já te avisei. Você não é um anão. Você é uma pessoa muito especial.
        – E sou uma pessoa pequena, muito menor que a maioria.
        Marina não desistiu, mas decidiu esperar algum tempo para insistir mais. Ela sabia o quanto Pisquila amava sua voz e suas canções. Elas eram como ópio para seu irmão. Ela começou a cantar. Em poucos minutos a face de Pisquila se desanuviou. Ela sentiu, que mais uma vez, eles estavam na mesma sintonia.
        – Qual é o problema? – ela atirou novamente.
        – Uma garota.
        Marina sentiu o inverno e as águas de março chegando em Dezembro.
        – Isso tem acontecido para cada homem neste mundo. Você mudou… pra sempre. De agora em diante, você nunca mais será o mesmo.
        Ela não tinha dúvidas sobre aquilo. Ela tinha medo de seguir o roteiro mental, que levava ela à próxima pergunta. Ela deu as costas para as figuras no espelho: tigres e selvas e nuvens cinzentas e espelhos dentro dos espelhos.
        – Você está apaixonado?
        – Penso que sim… eu… estou…
        – Qual é o nome dela?
        – Chiara.
        – Um belo nome é um grande começo. Como ela é?
        – Você se lembra da canção que te mostrei outro dia?
       
– Vagamente.
        – …if the moon has a sister… it´s got to be you…
Isso é o que ela é.
        – E a irmã da lua estuda na sua escola? Pisquila balançou a cabeça dizendo sim.
        – E… vocês se falam? Balançou a cabeça novamente.
        – E vocês conversam muito?
        – Às vezes sim. Começo a falar, ela começa escutando e de repente esquece de mim e fico falando com a parede. Ela tem um namorado, e ela é louca por este cara.
        – Um primeiro amor machuca, dói.
        – Quem foi seu primeiro amor?
        – Não vem ao caso. E na verdade, não tive. Nunca amei.
        – Eu não deveria me apaixonar também.
        – Você deve ser mais humano do que eu. Na estranha mistura que te fez, você deve ter mais de humano, irmãozinho.
        – Mas, você disse que erámos especiais. Nós somos semideuses.
        – Numa intensidade diferente.
        – Você foi jovem um dia.
        Ela riu.
        – Ainda sou. Mas, consegui evitar este rito de passagem.
        Ele saiu do quarto. Já era entardecer. A luz natural estava deixando o mundo da forma rotineira de sempre. Pisquila ligou a TV na sala de estar.
        Ela começou a pensar no passado. Por muito tempo ela tinha esperado por um sinal, um presságio. O destino dos semideuses está escrito com uma tinta impossível de apagar, um livre arbitrio menor que o dos mortais. Ela sempre soube que eles encarariam um ponto de virada brutal em suas vidas, mais cedo ou mais tarde. O primeiro amor de Pisquila era aquele sinal. Como amores sempre foram o sinal de algo radical, mudança ou cataclisma, nas estórias mitológicas, aquele era o momento. Era tempo de pegar a estrada, tempo de deixar Lagoa Profunda para sempre, e a luz celestial da estrada brilhava com força lá fora. Ela tremeu por dentro. E o inverno que chegara em Dezembro tornou-se mais forte. O novo começo era uma certeza.
        Com um pequeno movimento dos dedos da mão esquerda, como se batucasse na superficie gasta da penteadeira, o espelho à sua frente se tornou o retrato de uma paisagem com neblina. Uma garota corria sozinha. A terra parecia uma ilha. A garota parou e veio andando em direção ao espelho. Ela era uma versão mais jovem de Marina.
        – Não tenha medo. Você tem que fazer isso. – A garota linda disse com olhos penetrantes.
        Eu venho adiando este momento. Nunca matei ninguém.
        – Você não precisa matar. Você tem que garantir que seu irmão se tornará quem ele realmente é. Aqui de onde você veio isto não é pecado. Você não lembra? Temos sobrevivido a muitos deuses e semideuses, mas ainda somos um deles. Você ainda sou eu, correndo toda a extensão desta ilha. Você não lembra. Sem pecado. Mate quem te incomoda, se livre de quem te incomoda. Mostre ao seu irmão quem vocês realmente são.
        – Eu vou… eu vou… – Marina falou sem convicção.
       
        Uma semana mais tarde, Pisquila estava dentro de um arbusto alto, seu novo esconderijo, de onde ele via tudo sem ser visto. Ele esfregou os olhos e a terra desapareceu sob seus pés. Ele estava boquiaberto. Ele via com os olhos que a terra aberta sob seus pés talvez um dia fosse comer. Marina estava conversando com o namorado de Chiara: João. Ela usava um lindo vestido florido azul, pernas grossas cruzadas e era toda sorrisos para ele. Pisquila abandonou sua trincheira e andou em direção ao casal. João o viu antes de Marina.
        – Oi, anão. O que você quer?
        – Oi, mano – Marina deu o seu melhor sorriso.
        – Você conhece ele?
        – Ele é meu irmão. Use a pouca inteligência que tem e vai perceber que ele não é um anão.
        João estava completamente surpreso e ofereceu a mão à Pisquila.
        – Desculpe – ele disse.
        Pisquila não sabia o que dizer e ignorou a mão estendida do seu desafeto.
        Marina e João retornaram ao papo como se Pisquila fosse uma estátua com pombos na cabeça e tudo mais. Desapercebido, ele partiu. Até sua irmã. A pessoa que ele mais admirava e amava neste mundo estava sob o feitiço de João. Sua vida havia se tornado uma câmara de torturas. Qualquer outro duro golpe que pudesse sofrer iria ser como uma carícia de mãe.
        Quando Marina chegou em casa Pisquila estava jogado no sofá com as luzes apagadas.
        – O que você está fazendo? – sombria sua voz soou.
        – Sou sua irmã.
        – Meia irmã. O que você está fazendo?
        – Ajudando meu amado irmão. Aquele com quem divido o mesmo destino. E ele tem tido seu mais profundo e puro sentimento tratado como um amor menor, um amor de criança.
        – Eu odeio aquele João.
        – Eu também.
        – O que?
        – O que você pensa? Que eu estou apaixonada por aquele babaca?
        Ele levantou e ligou as luzes.
        – Vou fazer alguma coisa pra te ajudar, e a garota vai ser sua.
        – Ela não me ama.
        – Ela não te conhece ainda.
        – E nunca vai. O que você pretende fazer?
        – Você verá hoje à noite.
        Ela virou as costas e andou em direção ao quarto.
        – Você teve a chance de ver Chiara? – ele ainda perguntou.
        – Tenho que admitir que ela é linda. Amei os olhos verdes e os longos cabelos negros. – Ela disse já fechando a porta do quarto.
        Ela sorriu de volta, enquanto estranhos pensamentos explodiam em sua cabeça. Duas horas mais tarde Pisquila viu João abrir, sem cerimônia, a porta da casa e entrar sem cumprimentá-lo.
        – Onde está Marina?
        Pisquila moveu o queixo indicando a porta fechada. João marchou em direção a ela. Ele entrou e trancou a porta atrás dele. O longo silêncio enervava Pisquila. O inquietava ao pensar na irmã e não mais ver aquela figura protetora, pura, envolvida aos seus olhos numa luz matinal. Era como se a sombra que a figura de Marina projetava na parede tivesse tomado conta do seu corpo. Sentia, a ele e a irmã, tão vulneráveis ao mundo lá fora. Nunca sentira sua densa porção humana com tanta intensidade.
        A voz de Marina vinha de dentro do quarto. Quando reconheceu a canção ele quase desmaiou. Canção de conjurar as águas. O cheiro de mar tomava conta da casa. A força do golpe o fez ajoelhar, e esta posição o inspirou a rezar para o deus mais próximo. Uma longa fileira de nomes passou pela sua boca. Ele alcançou a porta do quarto da irmã engatinhando. Ele imaginou o rabo-de-peixe de Marina sendo banhado pela água salgada, e o embalsamado rosto de João engolindo água.
        Uma hora mais tarde ele viu a porta entreabrir. Por aquela fresta ele podia ver o reflexo de Marina no espelho. O oceano havia partido.
        – Onde está ele? – ele perguntou com a cabeça enfiada na fresta entre a parede e a porta.
        – Se foi.
        – Como?
        – O mar o levou.
        – Pra onde?
        – Isso não importa. Aliás, eu não tenho a menor idéia.
        – Como você se sente?
        – Sem culpa. E você poderia parar com estas perguntas?
        Ele sentou na cama, incapaz de mover um músculo.
        Ela foi quem quebrou o silêncio.
        – Finalmente aprendi o que é matar. Assassinato não é assassinato… aprendi que assassinato é apenas mais uma das belas-artes.
        E começou a pentear seus cabelos com uma escova perolada.